sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Algumas Considerações sobre o morrer em Montaigne

I

Chaque homme porte La forme entière de L´humaine condition.

Michel de Montaigne – Les Essais, Livre III, 2.


Há em Montaigne, um certo elogio da vida comum. Um desconfiar-se das circunstâncias e uma negação de toda possibilidade de generalização sob qualquer aspecto moral ou cognitivo. O homem é um ser ímpar e, por este motivo, dotado de especificidades que só se justificam se tomadas de modo particular. Nenhum modelo, nenhuma proposta ou receita serve para solucionar em um plano amplo os dilemas inerentes ao fato de estarmos vivos. Deste modo, não podemos de maneira alguma construir uma experiência segura acerca do mundo ou da vida, a única experiência que podemos vislumbrar é uma vaga e titubeante experiência de nós mesmos. Experiência essa que não nos garante nenhum grau de certeza perante os objetos ou o conhecimento em si. Cada caso é único, cada circunstância é significativa em si mesma. Não existe a possibilidade de traçar-se um caminho seguro para o viver bem ou a criação de um manual de instruções que nos leve a isso. Vive-se, vivendo. Por conseguinte, segundo ele, cada circunstância deve ser julgada em suas particularidades, através de um exercício vasto e contínuo de lidar com experiências as mais diversas, de um voltar-se aos fatos e tomar-se a si próprio como objeto e matéria de nossas inquirições.
De certo, este tema não é tratado de maneira tão brusca e simplória como no exposto até aqui. Entretanto, estas questões delineiam pontos importantes na visão que Montaigne parece demonstrar em seu ensaio. Análise que pretendemos fazer do ensaio de número 20 do primeiro livro dos Ensaios de Montaigne. Neste ensaio, o tema da morte é tomado a partir da premissa de que toda a nossa vida seria um lento exercício de preparação para o momento em que iremos deixá-la. Preparar-se para a morte, desta maneira, constituiria uma de nossas metas fundamentais. Nenhuma elucubração metafísica nos eximiria de encararmos de forma viril o correr dos dias e nos desobrigarmos do fato de que vivemos e devemos prepararmo-nos para o dia da partida, encarando o próprio processo como uma atividade constante e necessária. "A passagem pelo pensamento da morte, em vez de desembocar no além, reconduziu-nos para o detalhe mais íntimo e aparentemente mais fútil de um andamento de vida pessoal, inscrito na trama dos dias mortais" (Starobinsky, 1992, pg. 43). Essa preocupação montaigneana com o tema da morte é na verdade uma desobrigação com protocolos religiosos ou outras formas de lidar com o post-mortem. É antes uma obrigação com a nossa vida terrena e prática. Uma escolha moral de encararmos nossa realidade última que é a partida deste mundo. O objetivo deste treinamento moral estaria justificado pelo fato de que é necessário que naturalizemos a morte, visando aprimorar o proveito que tiramos de nossos dias. É preciso racionalizá-la e lidar com ela de uma maneira menos mística e fatalista.
Pode parecer obtuso encarar a vida como uma preparação para o momento em que iremos deixá-la, nossa morte. Visto superficialmente o argumento mostra-se frouxo e inadequado. Porém, na análise saborosa de Montaigne pode-se antever uma série de virtudes inerentes a esse treinamento moral. Não há tanto uma justificação pautada em termos físicos como nos atomistas gregos, sobretudo em Epicuro e Lucrécio. Tampouco há uma tipologia nos moldes da ética aristotélica, há antes uma firmeza de intenções e uma clareza de entendimento, apontando para o fato de que  preparar-se para a morte é uma maneira de atingir a liberdade. Desgarrar-se de todos os aspectos covardes e fatalistas em relação ao momento da passagem seria, então, um ato viril de tomada de consciência perante o mundo e perante si mesmo.  Alguns aspectos estão intrinsecamente ligados a essa discussão: o problema da condição humana, a tomada de posição que ele realiza no final do ensaio em que abre um debate claro com Lucrécio, a visão que se altera no final de sua vida no ensaio presente no livro III.
Fica aí a dica de leitura: Os Ensaios de Montaigne.

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