domingo, 2 de outubro de 2011

Do lúdico como forma de superação das agruras

Há alguns meses escrevi uma introdução para um trabalho acadêmico que gostaria de compartilhar. Não tem o acabamento necessário mas aponta para uma direção que Há muito venho pensando...






Há muito trem que não chega, muitos salários não recebidos, muita dignidade nas condições de trabalho adiada. As circunstâncias sociais nos fazem e desfazem. Mas também nós mesmos nos fazemos e desfazemos. Somos sujeitos de nossa história. E quanta história temos para contar e comemorar. Para celebrar. Quantas esperas frustradas e quantas lutas para torná-las realidade. Nossa história enredada na história social. Também nossa.

Miguel Arroyo – Ofício de Mestre, pg.135

“O prazer de criar, de emocionar-se com a docência, também é um direito de todo artífice, de todo mestre. Um direito de ofício.”
Miguel Arroyo – Ofício de Mestre, pg.149


O conceito de saúde carrega em si uma forte ligação com a idéia de plenitude. Se o ser humano não congrega certa harmonia em suas várias dimensões sócio-evolutivas  pode prejudicar seu próprio bem estar, adquirindo enfermidades de várias ordens. As dimensões afetivas, espirituais e físicas devem confluir para que o indivíduo atinja suas potencialidades em plenitude. Desse modo, vários fatores contribuem para que as doenças laborais surjam: esforços reiterados; dupla jornada de trabalho prejudicando a alimentação; falta de reconhecimento profissional; desmotivação e desagregação dos paradigmas sócio-familiares conhecidos.
Vivemos em um momento da história recente da humanidade em que estamos passando por uma crise de paradigmas. Os modelos antigos não respondem aos anseios atuais e ainda não encontramos sucedâneos satisfatórios que preencham essa lacuna. A desagregação da sociedade tem gerado, analogamente, uma desagregação interior, um desencontrar-se e desequilibrar-se que leva o ser humano a trilhar caminhos obscuros no âmbito do seu subconsciente. Os professores estão naturalmente expostos a esses malefícios, se estivéssemos em uma batalha, os professores estariam na linha de frente, recebendo assim as feridas mais profundas. Esse quadro muitas vezes impede que o profissional docente se desenvolva e busque alternativas para filtrar os estímulos que o estressam. Na maioria dos casos, esse processo leva ao adoecimento não só do corpo mas principalmente da mente. Houve em certo tempo uma corrente filosófica chamada estoicismo, a qual detinha em seu interior  filósofos ilustres como Sêneca e marco Aurélio, que pregava que o homem para atingir a plenitude do seu ser deveria também atingir a tranqüilidade da alma (Tranquilatio Animi). O processo que desagregava esse estado de plenitude era conhecido como flutuação da alma (Flutuatio Animi). É interessante notar que nesse período da história, conhecido como helenismo, a grécia foi invadida pelos macedônios sobre o comando de Filipe o belo. Seu filho, Alexandre, que mais tarde receberia o epíteto de “o grande”, seria o responsável por levar o Império Romano a lugares e caminho inimagináveis. Apesar dessa poderosa expansão, não se conquista territórios sem o derramamento de sangue. Esse período, deste modo, também foi repleto de medo insegurança e desespero. O estoicismo e outras correntes filosóficas como o epicurismo por exemplo, surgem da necessidade de lidar com esses aspectos negativos que atemorizavam a população do mundo antigo.
Atualmente, não estamos colocados em meio a batalhas por expansão territorial, mas aprendemos erroneamente a construir as nossas próprias. Temos dificuldade em lidar com nossas emoções, dedicamo-nos excessivamente ao trabalho, estamos submersos em um ambiente que responde violentamente às vicissitudes da vida. Isso tudo gera um sentimento de impotência perante aos problemas que a humanidade enfrenta. A sociedade, de certa forma, chama amiúde os professores a se pronunciarem sobre todos esses aspectos. Mais do que isso, cobra destes posturas e respostas simples para problemas complexos. Lembrando que o complexo é aquilo que é tecido junto[1]. Essas possíveis respostas deveriam ser construídas pelos vários setores da sociedade por meio do diálogo conjunto. Como no poema de Drummond os ombros docentes tem suportado o mundo sem colher os frutos da satisfação de vê-lo evoluir a contento.
Edgar Morin aponta freqüentemente para os intricados meandros dessas questões. Para ele, somos seres multidimensionais em uma existência multidimensional. O ser humano é uma unidade complexa que não pode ser compreendida se não o considerarmos ao mesmo tempo segundo seus aspectos biológicos, psíquicos, sociais, afetivos e racionais. Do mesmo modo a sociedade em que nos inserimos comporta dimensões históricas, econômicas, sociológicas e religiosas[2].  A educação, desta maneira, deve promover a inteligência geral. Isto é deve referir-se ao complexo, este entendido como uma trama de conceitos individuais que, tecidos juntos, mostram-se indissociáveis. A especialização que se fecha em si mesma sem permitir pontes entre o micro e o macrocosmo impede a apreensão tanto do global quanto do essencial.
Há nesta discussão um ponto essencial ao nosso problema. A consciência do complexo não é o lugar comum no processo educacional. Temos dificuldades imensas em interagir e transitar pelos campos de atuação das diversas disciplinas. Em muitos pontos a matemática, a história, as línguas modernas e todas as outras disciplinas se tocam e deveriam comunicar-se. Porém, geralmente elas caminham distanciadas acentuando mais suas especificidades que suas generalidades. Saberes que deveriam apontar para um eixo comum, se dispersam em meio ao nosso hábito ilusório de compartimentar, classificar e isolar. “Na escola primária nos ensinam a isolar os objetos (de seu meio ambiente), a separar as disciplinas (em vez de reconhecermos suas correlações), a dissociar os problemas em vez de reunir e integrar” Morin (2004, pg.15). Uma visão integrada do conhecimento permite o entendimento de que as aquisições intelectuais da humanidade são fruto de uma compreensão holística do universo e de suas especificidades. Conhecer requer, então, comparar, interpretar traduzir e reorganizar os conhecimentos obtidos. Isto só é possível quando enxergamos além das barreiras que dividem os saberes e procuramos compreender suas ligações.
Há um duplo caminho nessa trajetória: ensinar o complexo e compreender dentro de si o ser complexo. Essa multidimensionalidade do ser humano, nem sempre é respeitada por nós mesmos. Se algum aspecto de nossas vidas vai mal certamente afetará nossas certezas e tranquilidades de maneira igualmente danosa, causando uma flutuação em nossa psique que abrirá a porta de novos problemas e enfermidades sem que ao menos percebamos esse processo.
Se não aprendermos a encontrar a catarse no cotidiano, não nos livraremos nunca do peso que a repetição e a reificação ampliam em nossos ombros cansados. É como se perdêssemos o melhor de nós ao nos entregarmos à rotina. Tornamo-nos coisas, legando nossa humanidade a um plano etéreo que pouquíssimas vezes conseguimos atingir. No serviço público, há um contrassenso latente. Exige-se um nível de qualidade de primeiro mundo, porém, não se fornece os subsídios necessários para realizá-lo. Entre o sucumbir perante aos malefícios que nos rodeiam e tomar uma direção que nos redima, a segunda opção é sempre mais bem vinda. É preciso que os profissionais docentes estabeleçam metas pessoais além daquelas que a profissão exige. Praticas que extrapolem a rotina do cotidiano ajudam a suplantar as dores promovidas pela convivência excessiva em um ambiente que não atende aos anseios nem de educadores e educandos. É necessário reencontrar o sabor do lúdico dentro e fora de nossa. Prática. O filósofo Huizinga vê no jogo um liame entre o ritual e o cotidiano.
Existem entre a festa e o jogo, naturalmente, as mais estreitas relações. Ambos implicam uma eliminação da vida quotidiana. Em ambos predominam a alegria, embora não necessariamente, pois também a festa pode ser séria. Ambos são limitados no tempo e no espaço. Em ambos encontramos uma combinação de regras restritas com a mais autêntica liberdade. Em resumo, a festa e o jogo tem em comuns suas características principais. O modo mais íntimo de união de ambos parece poder encontrar-se na dança (Huizinga, 2000, pg.25)
Essa “eliminação” da vida cotidiana é fundamental, pois, permite reconstruir os liames perdidos dentro das agruras e especificidades da rotina. Quando não há maneiras ou vias que permitam purgar essas parcelas incongruentes de nossas vidas, os estímulos que nos estressam tomam conta de nossas reações e, fatalmente, perderemos o equilíbrio, abrindo caminho para que nossa saúde se debilite.
Deste modo, é fundamental que possamos fruir novas experiências e atitudes em nosso cotidiano. O lazer é tão importante quanto o trabalho em nossas vidas. No entanto, não damos a ele o espaço e importância necessários. A arte, as atividades físicas e culturais ajudam a combater processos que podem levar a doenças laborais tanto físicas quanto psicológicas. Encontrar ludicidade nas coisas que nos cercam pode, assim, permitir que valorizemos o aspecto saudável do bem viver ao invés de nos perdemos em meio a nossas mazelas cotidianas. Miguel Arroyo, expressa bem essa idéia ao analisar o depoimento de uma professora em seu livro “Ofício de Mestre”:
“Aprendemos a sentir, a brincar, a rir de novo. Lembro do trabalho feito no CAPE na Escola Plural. As professoras e os professores participavam de oficinas sobre dimensões tão esquecidas de sua condição humana: a memória, a sexualidade, a imaginação, os jogos. Uma professora, com mais de 15 anos de magistério, expressou sua avaliação sobre as oficinas: ‘Voltei a brincar de novo. Me senti criança. Solta’.”
Portanto, este trabalho mais do que uma pesquisa acadêmica, é uma tomada de posição pelo ofício docente. Certamente construída a partir de nossas percepções e experiências, porém, sem abandonar o rigor necessário àquilo que ele se propõe. Justamente por isso, escolhemos assumir a linguagem menos científica e mais coloquial. Pois mais do que provar algo, gostaríamos na verdade de propor um convite a uma sutil e necessária mudança de olhar sobre nós mesmos.
 “Só devassamos o mistério na medida em que o encontramos no cotidiano...”
Walter Benjamim


[1] “o recorte das disciplinas impossibilita apreender ‘o que está tecido junto’, ou seja, segundo o sentido original do termo, o complexo.” Morin (2000, pg.41)
[2] Cf. Morin, E., Os sete saberes necessários à educação do futuro, São Paulo, Cortez, 2000, pg.38.